O Ladrão


Hellah viu pela janela quando o moço entrou na casa do vizinho – e nem muita importância achou que havia na cena. Foi cuidar de sua vida e nem reparou em tempos todos decorridos. Até que viu o homem sair da casa ao lado da sua e vir em direção à casa que era a sua.

Curiosa, antecipou-se a atendê-lo e não soube entender direito o que sentiu quando viu-lhe os olhos e sorrisos. Parecia que sorrisos e olhos dele eram interesseiramente simpáticos e dissimuladamente honestos - respectivamentes.

Dizia que era de paz, que precisava – muito, muito – de abrigo. Dizia que, ao ver a casa, encantara-se, sonhador que tornara-se de ser parte dentro dela. Dizia que nenhuma casa havia no mundo mais bonita e aconchegante que aquela.

Hellah achou estranho: o moço tão doce, tão educado, tão cuidadoso com gestos e palavras... mas com um indescritível quê de incoerência na combinação de suas atitudes com seus olhares e sorrisos – na verdade, coisas todas que não combinavam entre si.

Hellah sentia que havia algo de errado naquele moço, mas nada havia nele que pudesse ser prova para suas desconfianças  pelo contrário, tudo o que dizia e fazia parecia muito sincero. Única dúvida era a intuição d'Hellah, que jamais falhara. Por isso foi que Hellah abriu-lhe as portas todas de sua casa e convidou-o a conhecê-la. Ele ia dizendo que tudo era lindo, que adoraria mudar-se para ali e permanecer para sempre. Hellah gostava de ouvir isso, embora a sensação de que algo havia de muito errado naquele moço permanecesse.

Até que Hellah decidiu agradar seu convidado e foi lá dentro buscar qualquer coisa. Quando voltou, cheia de presentes para o moço, ele nem mais estava lá. Hellah correu para a janela, tentando avistá-lo. E viu, sem nada entender na hora, que o moço entrava de novo na casa do vizinho, de onde somente sairia em escuridões de uma noite qualquer do futuro, quando ninguém seria capaz nem de imaginar o porquê daquilo.

No dia seguinte à noite qualquer do futuro, Hellah soube do assalto. O moço estranho levara tudo do vizinho, deixando-o incrédulo e fragilizado, pois que abrigara em sua própria casa, com toda a devotada bondade dos justos, o malfeitor que lhe deixaria sem posses algumas.

E então Hellah – toda cheia de sinceridades consigo mesma – riu e depois gargalhou muito da sua sorte. Agora entendia todos os porquês e todos os poréns: ela mesma também abrira as portas de sua casa para o ladrão, mas nada havia ali que tivesse valor material suficiente para prender os interesses dele.

Foi assim que Hellah descobriu estar imune a usurpações quaisquer que fossem, pois que tudo o que tinha de valor – embora tão infinito e, portanto, incalculável – era invisível aos olhos manipuladores desses ladrões comuns que estragam o mundo com seus sorrisos dissimulados e suas palavras premeditadas.