Armadilha


Era borboleta exuberante, roxa com degradê de lilás e detalhes prateados que brilhavam refletindo a luz do sol. Exuberante, diferente, linda. Há pouco saíra do casulo e deliciava-se com as coisas que via, os cheiros todos que sentia. Agora que voava, ou melhor, agora que flutuava no ar dançando com a brisa, tudo parecia diferente. Visto do alto, o mundo era muito diferente de quando rastejava-se em corpo de lagarta. Borboleta sentia-se a criatura mais importante deste e de todos os outros mundos, tão linda e exuberante que era, tão suave em seu bailado esvoaçante, admirada por todos. Assim imaginava e visitava todas as flores que lhe pareciam tão belas quanto ela mesma. Buscava sempre uma identificação com as flores que visitava, não iria alimentar-se de néctares quaisqueres, queria aqueles que mais lhe fossem saudáveis e salutares. Pensava que eles estavam nas flores mais belas, mais coloridas e viçosas. Estaria certa? Somente a experimentação eliminaria a dúvida.

Em pouco tempo, a borboleta tornou-se conhecida de todos aqueles lugares, de cada uma das mais belas flores. Era gentil e delicada, por isso, admirada. Voava longe em busca de seus néctares, ainda pensando que eles estavam nas flores mais belas, tão belas quanto ela mesma. Começava, porém, a sentir-se incomodada. Algo havia de errado em seus voos. Por mais que buscasse, não sentia o sabor maravilhoso que procurava. O alimento das flores era bom, mas muito longe do que ela desejava. Sabores todos bons e parecidos, quase iguais. Teria que sujeitar-se a experimentar o gosto de outras flores menos coloridas, menos macias, menos admiradas? Teria que procurar o oposto de si, do que ela era? Somente a experimentação eliminaria a dúvida.

Então, a borboleta passou a ser ainda mais conhecida por todos aqueles lugares, agora ainda mais admirada por alimentar-se também das flores menos belas. Ela aprendia a sentir as diferenças de uma forma diferente, nem tão diferentes assim eram os néctares das flores, fossem elas belas ou nem tanto. Os sabores eram apenas levemente diferentes, mais similares do que contrastantes. Ainda assim não conseguia degustar o que imaginava que deveria haver de mais saboroso naqueles mundos. Não sabia de onde vinha aquela vontade de beber um néctar maravilhoso, muito menos imaginava como sabia da suposta existência dele. Haveria algum tipo de instinto que orienta os seres lepidópteros exuberantes a prever um tipo ideal de alimento?

Pensava nessas coisas e voava. Batia asas e pensava. Coloria o mundo e sentia suas tintas diluindo-se aos poucos. Quanto tempo ainda gastaria pelos ares sem encontrar o néctar delicioso? Que desconcerto de voos eram os seus que não chegavam ao pouso perfeito? Quase desesperada, começou a seguir todos os cheiros anárquicos que sentia, cheiros que a levavam a montes de lama, dejetos pútridos e restos de animais quaisquer. Sabia que a experimentação é o único meio de eliminar a dúvida. Então, experimentava esses líquidos absurdos aos quais chegava através dos cheiros, degustava-os e descobria no lixo um alento para suas necessidades alimentares, um gosto de fato muito diferente daquele das flores, embora, ainda assim, muito distante daquele que sua gula adivinhava.

Um dia, a borboleta esvoaçava nas entranhas de um bosque cuja descrição poderia ocupar muitas páginas. Em resumo, um bosque com tudo aquilo a que um bosque tem direito. A borboleta esvoaçava por esse bosque, como sempre fizera em toda a sua curta vida, buscando alimento em flores e lixos. Foi quando sentiu o cheiro distinto. Que cheiro seria aquele que ainda não conhecia? Nem doce como o das flores, nem ácido como o dos lixos. Guiou-se por ele e descobriu-se seguindo um caminho novo. O cheiro vinha de um lugar mais escuro do bosque, cercado por galhos que abafavam o ar. O escuro abafado umedecia. A borboleta roxa e exuberante quase nadava agora, em vez de voar, tamanha a densidade do ar que ali nem circulava. Ela nadava no ar, no escuro, no calor, e o cheiro ficava cada vez mais forte e irresistível. Pensava vagamente que não deveria se embrenhar por caminhos tão estranhos, nem via aonde estava indo. Ao mesmo tempo, a vontade de descobrir o cheiro era bem maior do que a vontade de proteger-se contra os perigos predadores da vida de uma borboleta.

Até que, finalmente, a borboleta sentiu na pele o cheiro forte. Literalmente. Sentiu-se tocar em algo fino e pegajoso, algo que emanava o cheiro maravilhoso. Percebeu-se com as asas meio presas. Com as asas, realmente, meio presas. E, quanto mais tentava voar, mais presa ficava. Como se estivesse grudando-se numa fina rede a cada movimento que fazia, como se cada parte do seu corpo se grudasse quando encostava na rede. O escuro impedia que a borboleta reconhecesse a teia, mas, ainda que não estivesse escuro, ela certamente não reconheceria a aranha bizarra que havia tecido aquela rede com odores maravilhosos. A borboleta nunca se havia deparado com predador de tal estirpe em toda a sua vida de buscas. Como poderia reconhecê-lo, então?!

Algum tempo depois, já praticamente imobilizada na armadilha, a borboleta previa qualquer tipo de tragédia. Um erro que havia cometido e agora estava ali, irremediavelmente presa. Qual foi o erro? Desvendar o caminho escuro? Entrar no bosque? Ou procurar o alimento maravilhoso que seu instinto exigia? Pensava em coisas assim quando sentiu leve dor de picada. Que coisas esdrúxulas aconteciam em seu mundo, ó céus? Havia mais um bicho ali. E esse bicho injetava algo em seu corpo, qualquer coisa que ardia e depois queimava. Sentia-se arder e queimar aos poucos, lentamente, assustadoramente, irremediavelmente... Sentia-se impotente agora, previa que arderia e queimaria pela eternidade afora.

A aranha via pouco no escuro. Orientava-se pelas ondas que os movimentos provocavam no ar pesado de seu lar. Sentia as ondas começando no escuro, aumentando aos poucos, emanando dos bichos que grudavam-se em sua teia e, finalmente, arrefecendo. Só então ela aproximava-se e inoculava neles seu líquido digestivo, ácido implacável que, uma vez em contato com as entranhas de seres vivos, não oferecia chance alguma de recuperação. O escuro impedia que a aranha reconhecesse a borboleta roxa com nuances lilásicos que grudara-se em sua teia, mas, ainda que não estivesse escuro, ela certamente não reconheceria o perigo que as cores roxas alertavam. A aranha nunca se havia deparado com equívoco de tal estirpe em toda a sua vida de caças em armadilhas. Como poderia reconhecê-lo, então?! Nem mesmo a borboleta, exuberante que era, sabia que continha em si o veneno mortal que afastava os predadores. Exuberante que era, pensava que os pássaros e sapos e outros bichos não a atacavam por admiração ao seu excêntrico mosaico de cores. Jamais imaginaria que era justamente o mosaico de cores excêntricas que a delatavam como bicho venenoso e, portanto, impróprio para consumo animal.

A borboleta transformava-se, lentamente, numa pasta digerida. Sentia-se adormecer aos poucos, entrava nas estranhas dimensões do nada mais absoluto que pode haver. Nesse momento, a aranha apenas começava seu repasto, regalava-se com um tipo de alimento que nunca antes havia provado – o sabor único e indescritível que sua esganação já desejava repetir. Que gosto era aquele tão maravilhoso que descobria? Teria a grande dádiva de obtê-lo novamente em sua armadilha? Ao pensar assim, desacelerou o ritmo com que degustava o alimento novo, engolia devagar a pasta para melhor aproveitar o sabor, já que não sabia se uma outra vez, no futuro, o receberia em sua teia. A aranha não sabia, a borboleta jamais saberia, mas, num espaço muito curto de tempo, ambas encontrariam-se novamente nas dimensões absolutas do nada mais estranho que poderiam imaginar.