Encanto


Diz a lenda que, tempos – muitos, muitos – atrás, o primeiro boto foi enfeitiçado. Era um boto daqueles cor-de-rosa, nem adulto ele era ainda. Num dia ensolarado, brincava num trecho calmo do rio quando uma jovem aprendiz de feiticeira o avistou. Foi esse o Primeiro Encontro – início de tudo. Encantada com bicho tão lindo que era aquele, quis tê-lo para sempre para si. Aguardou ansiosa pela próxima lua cheia e, assim que avistou-a inchada no céu, transformou-se em boto fêmea e seduziu o mamífero. Ele, que nunca antes estivera envolvido em relações carnais, nunca mais foi capaz de querer mais ninguém que não fosse aquela criatura linda que entrava nas águas quando era lua cheia e partia para a terra quando a lua minguava.

Os frutos daquele romance já nasciam todos encantados. A primeira foi uma menina, o segundo foi menino e, daí por diante, as filhas eram sempre ímpares e os pares eram sempre filhos. Eram bebês lindíssimos – tão lindos que perturbavam os sentidos de quem quer que os encarasse. Cresciam crianças estranhas, que apreciavam passear nuas, comiam peixe cru e brincavam de ficar meia hora submersas em águas de rio. Tornavam-se as moças mais belas e os rapazes mais belos das redondezas, provocavam desejos inconsequentes e paixões insanas nos rapazes todos e nas moças todas que, por qualquer motivo, deparassem-lhes os olhos. Os filhos da feiticeira com o enfeitiçado – encantados todos –, no entanto, nunca queriam saber dessas gentes humanas em sua vida.

Nem bem adolesceu, logo que surgiu no céu a lua cheia, a menina primogênita transformou-se em boto fêmea ao entrar no rio e seduziu um boto virgem. Passou aquela semana na água, fazendo as loucuras mais descabidas com seu par. Se estavam juntos, eram invisíveis para as demais criaturas do mundo. Quando a lua mudou, ela saiu grávida da água e somente voltou, transmutada em boto fêmea, quando a lua encheu de novo. Encontrava-se com o boto que a fertilizara toda vez que a lua ficava cheia e viveu em lua-de-mel com ele enquanto durou a gravidez. Quando, porém, chegou a hora de dar à luz, ela saiu da água e o boto que era o pai de sua filha endoideceria, pois que nunca mais teria notícias dela e nem seria capaz de querer outra fêmea qualquer que fosse. A menina primogênita deu à luz e, na lua cheia seguinte, entrou de novo transformada na água, seduziu outro boto virgem e tudo repetiu-se, exceto que, desta vez, o filho era menino. E, assim, tudo repetiu-se de novo e muitas outras vezes enquanto durou sua vida, sendo os filhos pares e as filhas, ímpares.

Quando adolesceu, o segundo filho da feiticeira e do primeiro boto enfeitiçado também aproveitou a lua cheia para entrar no rio transformado em boto e seduzir uma fêmea virgem. Passou aquela semana na água, fazendo as loucuras mais descabidas com seu par. Se estavam juntos, eram invisíveis para as demais criaturas do mundo. Quando a lua mudou, ele deixou sua amante grávida de um filhote macho, saiu da água e somente voltou a ser boto quando a lua voltou a ser cheia. Encontrava-se com a fêmea que fertilizara toda vez que a lua enchia e viveu em lua-de-mel com ela enquanto durou a prenhez. Quando, porém, chegou a hora dela de dar à luz, ele saiu da água e aquela que era a mãe de seu filho endoideceria, pois que nunca mais teria notícias dele e nem seria capaz de querer outro boto qualquer que fosse. Na lua cheia seguinte, o segundo filho da feiticeira e do primeiro boto enfeitiçado voltou transformado para as águas, seduziu outra fêmea-boto e tudo repetiu-se, exceto que, desta vez, o filhote era fêmea. E, assim, tudo repetiu-se de novo e muitas outras vezes enquanto durou sua vida, sendo as filhotes-fêmeas pares e os filhotes-machos, ímpares.

As irmãs da primogênita transformaram-se, seduziram e viveram tal como ela. Os irmãos do seu irmão também transformaram-se, seduziram e viveram tal como ele. Os rebentos das meninas seguiam o mesmo exemplo e suas netas e seus netos também seguiriam. E as crias dos meninos logo adolesceram e começaram a caminhar para a terra em noites de lua cheia para seduzir rapazes e moças virgens. Voltavam para o rio quando minguava a lua e voltavam para a terra quando a lua enchia. Encontravam-se invisíveis com seus pares enquanto havia feto sendo formado e desapareciam quando havia nascimento, provocando a doidura nos que se entendiam abandonados em terra. Com algum tempo, a lenda estava criada: encantados humanos enfeitiçavam botos e encantados botos enfeitiçavam humanos, numa anarquia de paixões enlouquecidas que viravam loucura apaixonada.

Tempo qualquer depois, até a morte fez-se presença na realidade da lenda. Toda vez que a lua se enchia no dia bissexto, humanos encantados que não esperassem filhos ou botos encantados que não esperassem filhotes desintegravam-se, assim como todos os seus respectivos pares já abandonados. Única exceção era o primeiro casal: a feiticeira e seu único enfeitiçado. Depois do vigésimo oitavo filho, eles descobriram-se imunes à morte bissexta: imortais o que eram, nem mesmo capazes de envelhecer.

Muito tempo passou até haver o Segundo Encontro – a volta ao início. Nesse tempo, muitos detalhes haviam sido acrescentados à lenda e incorporados à vida dos encantados e dos enfeitiçados. Aconteceu numa noite em que, depois de crescer, a lua nascia cheia. Nessa noite, uma encantada entrava pela primeira vez na água para transformar-se em fêmea-boto no momento exato em que um boto saía pela primeira vez da água para transformar-se em rapaz. Trombaram-se. Caíram cada qual num pedaço de terra e noutro pedaço de água. Metade do corpo em cada pedaço. Olharam-se nos olhos e encantaram-se e enfeitiçaram-se reciprocamente. Então, sem entender o que acontecia, viram-se transformados em mulher-boto e boto-homem. A transformação não completava-se: sereia e tritão, o que viraram.

Aproximaram-se, tocaram-se e beijaram-se, mas jamais poderiam amar-se como os outros animais. Quando entenderam a impossibilidade de pertencerem-se uma ao outro, um à outra, a dor que sentiram foi tão absoluta que gritaram. E só os encantados e os enfeitiçados ouviram o grito deles. E, no momento em que ouviram, desintegraram-se todos e o encanto e o feitiço extinguiram-se para sempre.

Únicos sobreviventes foram a feiticeira e o primeiro boto enfeitiçado desta lenda. Ao longo dos tempos, eles entenderam que não havia feitiço algum entre eles, posto que a magia que os unia era tão-somente o amor mais encantado que poderia existir. Por isso eram imunes à morte bissexta. Por isso nem precisavam de prole para garantir os laços entre si. Por isso, também, estavam e permaneciam juntos desde o Primeiro Encontro.

Não havia mais feitiço – mas um amor como esse só podia mesmo ser encantado.