Fuga


Queria ir para longe, muito longe – o mais distante possível. Há tempos era desagradável viver ali. Agora, contudo, insustentável tornara-se a situação. Insuportável - simplesmente! Se pudesse, sumiria agora e satisfações nenhumas daria a quem quer que fosse. Iria embora para lugar qualquer que fosse bem longe e não mais voltaria. Iria embora para sempre. Para sempre é que iria. E, finalmente, sentiria-se livre de verdade. Mas por que não podia ir embora imediatamente? Quem impediria que fosse? Pela Lei, era livre para ir e vir, não era? Era maior de idade, responsável, tinha documentos, carteira de trabalho, conta no banco, não devia dinheiro nem obrigações a outrem, estava em dia com seus deveres civis... Só queria ir para longe dali. Iria para um lugar bem distante. Não havia quem impedisse – então, iria agora.

E foi.

Foi para uma cidade vizinha à sua e logo percebeu que ali também não era possível viver. Talvez por estarem muito próximas, as localidades eram meio parecidas e isso dificultava sua tentativa de ser livre de verdade. Não conseguia desligar-se completamente das recordações. Não era possível ficar ali por mais tempo. Precisava ir para mais longe.

E foi.

Foi para uma cidade em outro estado, mas talvez ainda não tivesse ido longe o bastante. Para ser livre, precisava esquecer. Pensava que a distância tinha o poder de apagar certas lembranças desagradáveis da memória – mas, por alguma estranha rede de associação de ideias, sempre recordava o que queria esquecer. Era necessário que fosse para mais longe ainda.

E foi.

Saiu do país. Continuava, entretanto, lembrando-se de falas e fatos e imagens e pessoas que não deviam ser lembrados. Como sentiria-se livre se as amarras do passado mantinham-se prendendo a circulação de sua vida, impedindo que prosseguisse? Urgia que fosse suficientemente longe, para lugar qualquer que nenhuma memória pudesse alcançar. Iria agora, não podia esperar.

E foi.

Foi para uma localidade no continente mais afastado do seu e ainda assim não sentiu-se livre. Cruzou lugares exóticos, visitou cidadezinhas e metrópoles, conheceu a rusticidade da vida rural e o conforto da tecnologia avançada, passou por recantos turísticos e retiros espirituais, aventurou-se por rios e vales, florestas e pântanos... Quase deu a volta ao mundo.

E, quando deu por si, estava absolutamente só, no topo de uma montanha tão alta que só podia ser o lugar mais distante que poderia imaginar. Distante de tudo e de todos. Distante do mundo todo e de todo mundo.

Infelizmente, porém, ainda não estava assim tão distante do que mais gostaria de estar. Sua memória era implacável, irredutível, negava-se a abandonar o posto que há tanto tempo ocupava. Estava longe – as lembranças, todavia, estavam sempre e cada vez mais próximas. Queria fugir delas, mas a todo momento delas lembrava-se. As recordações ficavam por perto, rondando, invadindo sua mente. As lembranças doíam.

Agora, compreendia que poderia ir para onde quisesse, para longe, bem longe, mais longe ainda, o mais distante possível... mas sua memória iria junto. Poderia ir para longe, mas não poderia deixar as lembranças para trás.

Iria para longe. Sim, iria embora para sempre. Sumiria e não daria notícias. Fugiria do mundo, talvez até da vida. Entretanto, agora sabia que jamais conseguiria fugir do que havia sido.