Desnorteios


O mundo sofria de seus revertérios, enquanto Hellah expulsava de dentro de si todos os desnorteios que desconhecia serem dela. Os desejos.

Ela era duas, mas só uma poderia ser. As duas eram opostas, contrários difíceis de se alcançarem. Brigavam muito e machucavam-se cada vez mais, embora a vida pela qual brigassem passasse incólume, indiferente e irremediável do outro lado delas. A elas não havia condições possíveis de perceber a passagem do tempo, ocupadas que estavam em se vencer.

Havia “ele” também. Neste caso, havia um “ele”. Papel dele era participar temporariamente da vida dela. Não muito, não pouco. Apenas o suficiente para que Hellah acordasse de volta. Uma delas. A mais forte. A melhor. Assim ele pensava. Assim Hellah pensou também. Pensavam que havia uma mais forte e melhor.

Ele existia somente dizendo “sim”. Hellah só podia ser se dissesse “não”. Eram opostos também, mas não brigavam. Completavam-se. Poderia haver brigas se também houvesse amor. Não era o caso. O que havia era uma exuberância de descobertas nela, exageros de ânimo nele... E mais a vontade imediata de ambos por algo que fosse só deles, sós. O mundo era um espaço de muitos sóis, onde o tempo desaparecia. Fora da realidade estavam. Fora do mundo comum. Queriam completar-se, queriam se completar.

Aos poucos, desapareciam em si, de si. Deixavam de ser e passavam a estar. As máscaras. Estavam juntos. Estavam sós. Os jogos começaram sem que eles mesmos percebessem. Tudo era permitido, desde que fosse dissimulado.

Sentimentos? Nenhuns, embora todos a um só tempo. Tantos que sufocavam, apertavam... E a intensidade dos cheiros, dos sons e dos mundos causava desespero, angústia, pois que havia os desencontros... Mundos opostos ansiosos pela mistura doce e quente, perigosa. Mundos opostos que queriam se encontrar. Era preciso que. Precisavam-se.

Não se serviam, porém. Hellah não devia. Ele não podia. E o mundo transformava-se em fratura. Rompida a ligação cósmica.

Só assim Hellah percebia que era duas, que eram desconjuntadas as duas. Foi preciso o desejo, a impossibilidade e a perda para que se encontrasse em si. Despertava e as duas estilhaçavam-se, passavam a ser muitas, incontáveis, inacreditáveis, impossíveis... Estavam todas lá e nenhuma estava lá. Todas brigando, todas se amando. Cacos de espelho espalhados pelo chão, espelhados pelo lado de dentro.

Jamais o mundo seria o mesmo. Jamais seria a mesma. Jamais reencontraria os apoios seguros – que às vezes eram substituídos ou transformados, mas nunca deixavam de estar lá. Agora, não haveria mais alicerces. O mundo perdia suas esferas. Hellah perdia suas esquinas. Ganhava a si.

Hellah fora duas, fora muitas e conseguia ser uma, enfim. Na verdade, várias em uma, equilibrada em si. Agora, não havia mais brigas. Hellah era uma só. Uma e só. Ficava só, mas era una, única. Única, embora só. Era Hellah. Era dela. E poderia ser quantas quisesse.