A Invasão das Borboletas


Começou como é típico em vésperas de qualquer primavera em cidadezinhas de interior: alfaces e couves infestadas de repente com ovinhos de borboleta. Alguns poucos cidadãos mais atentos, entretanto, notaram que este ano parecia haver mais ovos do que o comum – não importava quantos fossem esmagados, sempre havia mais e mais deles nas folhas das hortaliças.

Algum tempo depois, eram as lagartas que empesteavam as singelas plantações de subsistência. Muitas pessoas tiveram a sensação de que havia lagartas demais este ano, muito mais do que jamais haviam visto. Quanto mais matavam os bichos, mais certeza tinham de que havia lagarta demais – tantas como se fosse impossível (ou inútil?) exterminá-las. Pela primeira vez desde que se lembravam, alfaces e couves tornaram-se itens raros em refeições de todos dali.

Quando, enfim, os casulos apareceram - grudados aos montes em muros, paredes, ripas, troncos e outros inúmeros lugares, propícios ou não -, a população daquela cidade levou susto grande. De início, evitavam escorar-se em lugar qualquer que fosse, para não esmagar as pupas. Locomoviam-se com cautela para não pisá-las. Os adultos recomendavam às crianças que deixassem em paz os bichos.

Com o tempo, porém, a situação tornou-se difícil. Incomodava. Quase não havia mais lugar livre daqueles bichos encasulados. Cantos, canos, calhas – até nos carros eles grudavam-se. Bancos, buracos no asfalto, lâmpadas, outdoors – tudo tapado por eles. A cidade inteira infestava-se.

E, inadvertidamente esmagados diante da impossibilidade de serem preservados, tantos que eram, os casulos tornavam-se massa gosmenta e repugnante espalhada por todos os lugares. Em pouco tempo, já as pessoas desocupavam lugares, pois que precisavam agir e prosseguir em suas vidas, daí que varriam calçadas e muros e enchiam latas e mais latas de casulos, bem como incentivavam as crianças a brincarem de exterminar os bichos. E, ainda muito embora tenha sido assim, número deles parecia jamais diminuir – antes o oposto, parecia para sempre aumentar.

Até que houve o tempo em que as primeiras borboletas nasceram. E logo as outras também. Em poucos dias, a quantidade de asas em voo por aquelas plagas era tamanha que ninguém, estando são de consciência, aventurava-se a sair de casa. As borboletas, em número infinito, eram bem capazes de derrubar qualquer cidadão, mesmo os mais fortes, em atitude de arrastão; eram capazes de entupir escapamentos de carros e tubulações de ar condicionado; eram bem capazes de pousar em alimentos e cair goela abaixo sem se darem por notadas.

Não demorou muito até que portas e janelas precisassem ser e permanecer fechadas – e até as frestas houveram que ser vedadas, tanto pó colorido de asa de borboleta pairava nos ares. Bichos predadores sentiram-se atraídos por tanta fartura e já migravam para lá. A prefeitura e a secretaria responsável tentaram uma ação de envenenamento por fumacê. Em vão, pois que, se muitas borboletas morriam, milhares de outras nasciam no mesmo dia. Alguns habitantes, os mais corajosos, tentaram armadilhas, enquanto as crianças deliciavam-se com brincadeiras de tiro ao alvo, tapas mortíferos no ar ou apostas de quem capturava mais bichos. Tudo em vão, posto que, quanto mais borboletas eram assassinadas, mais delas surgiam para repor o exército alado e colorido. O caos instalou-se na pequena cidade e já ninguém sabia mais o que fazer para solver a questão.

E foi então que, em manhã ensombrecida pelas asas - tantas eram que dificultavam a irradiação natural do sol -, uma menina adolescida sentiu-se sufocada dentro do quarto que era o seu. Sem mais poder conter-se, abriu janelas e subiu em parapeitos, ansiosa de respirar o pólen lepidóptero. No mesmo instante, ondas e mais ondas de borboletas invadiram seus aposentos, fizeram-na desequilibrar e cair da janela. E, antes que tocasse o chão, outras borboletas fizeram-na flutuar em tapete multicor - voador.

A menina, então, abriu os braços e fechou os olhos – deixou-se levar por aquelas asas. E as borboletas a levaram para fora, para o alto, tão alto que, quando a menina quis abrir os olhos, nada mais viu além do céu acima de si e a nuvem gigantesca de borboletas embaixo.

Estonteante de alegria, a menina jogou-se do tapete e foi recebida pelas amigas lá embaixo, jogou-se de novo e foi salva de novo, e mais uma vez e tanto que quase sentiu que voava. Todas as borboletas reuniram num ponto do céu para brincar com a menina. E alguém, lá embaixo, na cidade, viu aquilo e mostrou pros outros, e logo a cidade inteira parou para contemplar o espetáculo de bailarinas cheias de asas e menina no meio delas.

Somente ao fim do dia foi que as borboletas levaram a amiga de volta para o chão. E todos os moradores da cidade as receberam com flores e sorrisos. E, sem entender o que acontecia, viram as borboletas irem embora, todas juntas, para lugar qualquer do mundo, bem longe dali. E cada um que ali estava desejou com muita sinceritude que elas voltassem no dia seguinte, o que – obviamente – não aconteceu.

As borboletas jamais voltariam àquela cidade. Ainda tinham muitas outras para ensinar...