O Leão e a Borboleta


Era o leão, não sem motivos, o rei da floresta. A simples existência dele era suficiente para manter a ordem e a segurança do lugar, pois que todos sabiam-se protegidos pela ferocidade sábia daquele bicho imponente, cheio de garras e presas para afugentar os inimigos, mas também cheio de jubas e ronronamentos para consolar os que carecessem de afeto ou amizade.

O leão era o bicho mais importante da floresta. E todo mundo sabia disso.

Todo o mundo sabia disso, exceto o próprio leão. Pois que ele era cego e surdo – incapaz de enxergar sua própria força, determinação e coragem, e incapaz também de saber da admiração e do respeito que lhe devotavam seus súditos.

O leão agia – unicamente – por instinto. E era bastante apurado o seu instinto – pois que somente contava com os sentidos mais genuínos que existem nas criaturas todas, os sentidos que, de fato, sentem: olfato, paladar, tato e intuição.

E era o leão tão bom em ser assim que nunca permitira que qualquer mal acontecesse ao seu reino ou aos seus súditos. E era tão bom em ser assim que ninguém jamais havia desconfiado da sua deficiência de visões e escutamentos. E o próprio leão não sabia que não sabia usar os olhos e ouvidos que tinha, pois seu instinto o ensinara a ver e ouvir de maneiras distintas do que costumava ser o convencional.

O leão agia baseado apenas no que sentia. Sentia cheiros, sentia gostos, sentia toques, temperaturas e vibrações, sentia a energia do que o cercava, do que aproximava-se ou recuava. E seus sentidos o guiavam como se nem houvesse outra forma de as coisas acontecerem, como se fossem reações automáticas e exatas – absolutas.

Houve o dia, porém, em que as coisas mudaram. O dia do primeiro encontro. Nesse dia, o leão caminhava distraído por terras que nem sabia serem suas quando sentiu uma dor grande de queimadura grave num ponto entre uma das patas dianteiras e o coração. Bateu com a pata no ponto da dor para livrar-se do incômodo, que julgava ser o ataque de um bicho peçonhento qualquer. A dor, porém, aumentava e tomava conta de outras partes do corpo. Sentia como se chamas se alastrassem por sua pele, do lado de fora e do lado de dentro. A língua inchava, sufocando-o. Perdia o equilíbrio numa tontura inédita em sua vida, como se o mundo inteiro girasse abaixo dos pés que eram os seus. Até que desabou num solo que parecia muito macio e sentiu-se leve tal qual a alma que de repente liberta-se de um corpo velho e decrépito.

Viu-se em mundos coloridos e cheios de movimentos, com bichos que nunca existiram, paisagens que ninguém havia criado, construções de surrealismo e sons absurdamente inconcebíveis. Eram tantas as cores e danças e formas e ruídos que ele chegou a pensar que ficava doido ou talvez houvesse morrido.

Quando – sabe-se lá quanto tempo depois – enfim pôde recobrar os sentidos, o leão deparou-se com uma lagarta muito exótica que velava seu desmaio. Cheia de cores nos pelos venenosos, a lagarta estivera estática diante daquele corpo tão grande e forte do leão que derrubara com simples e leve toque. Extasiada perante visão tão imponente e bela daquele bicho, a lagarta sentia vontade grande de acariciar o pelo macio e a juba dourada que eram dele, mas sabia que o veneno que era dela era bem capaz de destituir para sempre o leão do posto real que ocupava no mundo ilusório da matéria. Assim, preferiu tão somente manter-se em observação daquela criatura nobre e exuberante que ele era.

E, ao ver que levantava-se o leão, a lagarta fez muitas reverências e destrambelhou-se a pedir desculpas, escusas e perdões. Queria certificar-se da saúde do rei da floresta e desculpar-se mil vezes pelo terrível acidente que causara sem nem ter a intenção. Estava quieta em meio às folhas de um arbusto qualquer, alimentando-se delas, quando viu-se em meio aos pelos da sua majestade. Não o vira aproximando-se e, ao que parecia, ele também não a vira a tempo de desviar-se do veneno dela.

O leão não distinguia direito o que aquele bicho maravilhoso de multicores dizia, pois que era a primeira vez em sua vida consciente que ouvia som qualquer que fosse. E tão atarantadamente encantado estava com a primeira visão consciente de sua vida – a imagem tão colorida daquela criatura à sua frente – que sentia-se hipnotizar com os movimentos de onda que ela fazia e suas anteninhas pequeninas que balançavam ao vento. O leão nem percebia que mantinha-se com o corpo imóvel e os olhos vidrados diante da lagarta, babando quase sobre ela, mudo às escusas e perguntas tão preocupadas que ela dizia.

E quando enfim a lagarta cansou-se de falar – e o silêncio pôde enfim ocupar o lugar que era seu de direito –, ela pôde enfim também admirar a beleza do leão, a suavidade do seu pelo e a graciosidade da sua força. E ficaram longo tempo assim, parados e mudos, presos um ao outro sem que houvesse laços entre eles, presas um do outro sem que houvesse gula que justificasse tamanho apetite.

Até que olhos deles encontraram-se num choque alucinado de filme romântico. E o tempo – simplesmente – parou – por tempo indeterminado. E ambos souberam que ali – naqueles olhos deles dois – o destino traçava seu desenho.

O rei da floresta, então, pôde enfim balbuciar palavras que eram as primeiras de toda a sua vida, uma ordem peremptória e irrevogável: “Seja a rainha do meu reino, ó criatura multicor”. E a lagarta, tomada de grande susto, sentiu que era hora exata de fugir. Como poderia ser rainha se era dona de um veneno que poderia ter matado o rei?! Não concebia a possibilidade de fazer mal qualquer que fosse àquele bicho tão lindo e importante para o mundo – já também tão importante para ela?!

Mais que depressa, a lagarta embrenhou-se em meio às folhas do arbusto. E, mais que depressa, o leão tentou embrenhar-se também à caça dela. E ela fugia e o leão a procurava. E ela sumiu e o leão tentava encontrá-la. E em pouco tempo todos os bichos da floresta sabiam da perseguição esdrúxula do rei a uma certa lagarta colorida e perigosa que o derrubara com seu veneno. Uns diziam que ele queria exterminá-la por tê-lo atacado. Outros diziam que ele queria agradecê-la por ter-lhe devolvido alguns sentidos que ele antes nem possuía. Outros diziam que era simplesmente o vício do veneno.

E, a cada comentário que ouvia, a lagarta mais para longe fugia. E o leão mais duramente a perseguia. Ele ainda não sabia que amor não se caça, pois que tão somente aparece em nós – invisíveis dentro dos seres.

E, quando o leão não tinha mais pistas para achar a lagarta, seu reino já havia tornado-se uma amostra simples do que poderia ser o caos. Distraído pelas cores e sons que agora era capaz de distinguir, perdera quase completamente a astúcia do instinto. Quando via bicho qualquer aproximando-se de seus domínios, não sabia mais se era súdito que devesse ser governado ou inimigo que devesse ser combatido. Se era súdito, não sabia se era para ser ajudado ou punido; se era inimigo, não sabia se era para ser atacado ou afugentado. Cego e surdo, o leão sabia sentir e – de imediato – agir, como se algo mais sábio e forte o guiasse. Agora que via e ouvia tudo, o leão havia-se atacado pela dúvida, todos os antigos sentidos ofuscados por esses dois sentidos que nem sentem. Adquiria consciência de si, mas perdia-se no complexo universo do arbítrio – as possibilidades de escolha e suas consequentes implicações tantas vezes mal entendidas.

Como ninguém mais divulgasse notícias da lagarta, o leão caiu em si e viu-se o responsável pela desordem do seu reino. E, julgando-se irresponsável e inepto para o cargo que ocupava no mundo, fugiu para outras florestas, em busca do que ele nem ainda sabia o que fosse – talvez porque a busca fosse a de si mesmo.

Antes, porém, que soubesse disso, quis viver sozinho em parte qualquer de floresta sem dono nem rei. E quase morreu de tristeza, posto que não havia com quem conversar nem brincar nem compartilhar as largas refeições que caçava. O leão ainda não sabia que a solidão é a pior companhia para uma criatura – ainda que seja a melhor professora que uma criatura possa ter.

Quando cansou-se de ser tão só, quis reinar novamente, mas não podia voltar à sua floresta, pois que estava constrangido por tê-la bagunçado e, em seguida, abandonado. Decidiu, então, roubar o reino de outrem. E quase morreu de cólera, posto que os súditos não o veneravam como autoridade real, os vassalos eram-lhe insubordinados, os outros reis o ignoravam e todos viviam tentando contra sua vida, ávidos por ter seu verdadeiro rei de volta. O leão ainda não sabia que reinos não podem ser roubados, pois que sempre hão de pertencer a quem de legítimo direito.

Então, já que não mais queria ser só e nem mais podia ser rei, tentou viver como súdito. E quase morreu de tédio, posto que todas as tarefas que julgava desafiadoras eram realizadas pelo rei – e nenhuma das tarefas que eram-lhe delegadas exigia que usasse as habilidades que tinha. Sentia-se em desperdício de talentos, inútil em atividades incompatíveis com a imponência que era a sua. O leão ainda não sabia que qualquer reino é pequeno demais para ser reinado por duas realezas.

Sem mais ter aonde ir nem onde ficar, foi que resolveu enclausurar-se em esconderijo qualquer que lhe fosse abrigo pelo resto dos dias. Estava decidido a simplesmente ficar ali, deitado e inerte, até que a morte o viesse buscar para viagens em outros mundos. E quase morreu foi de saudade do passado que antes vivia: seu reino, seus amigos, seus súditos e aquela criatura multicor que miraculosamente fizera seus olhos e ouvidos funcionarem. Ele ainda não sabia que é muito difícil para um leão fugir de sua tendência a ser rei.

E enfim o leão entendeu que estava pronto para voltar ao seu reino. Urgia que remediasse o que fosse possível, antes que perdesse o único mundo que de fato sempre havia sido seu. Então ele voltou à sua floresta e todos os bichos o esperavam ansiosos pela ordem e segurança de seu governo, pois que todos sentiam-se acolhidos e protegidos sob a guarda da sua majestade. No início, o leão teve alguma dificuldade para cuidar das coisas, mas aos poucos recuperou o antigo jeito sábio de reinar – agora ainda mais competente por dispor de olhos e ouvidos que enxergavam e escutavam o mundo sob perspectivas distintas do que costumava ser o convencional.

É que ele precisou de tempo – quanto tempo (?!) – para aprender a ver e ouvir de modo apurado e recuperar os antigos sentidos e o instinto e usar todos eles juntos para reinar.

Enquanto tudo isso acontecia em vida do leão, a lagarta escurecia suas cores num casulo que ela mesma construía. Sem saber o que haveria lá dentro – e sem nem mesmo saber se dali sairia um dia – ela costurava-se em seda e preparava-se para enfrentar a si mesma. Sentia transformar-se o corpo, irreconhecia-se naquele aperto que a envolvia, perdia o veneno que sempre a havia protegido e em troca ganhava asas para fugir caso fosse preciso – e para viajar, brincar e dançar sempre que assim desejasse.

E quando enfim ela saiu do casulo, já nem mais se reconhecia com aquelas asas multicores num corpo esguio e leve, a boca devastadora de outrora substituída por uma linguazinha delicada, aquela fome descontrolada de folhas desaparecida diante de um desejo incontrolável de líquidos doces. Somente suas cores eram as mesmas, antes em pelos, agora em asas.

E ela também precisou de tempo – quanto tempo (?!) – para aprender a voar.

E houve o dia em que o leão caminhava pela floresta, dentro dos limites que sabia serem todos seus, quando sentiu algo que debatia-se em sua juba. Levou a pata ao local para se livrar daquilo e sentiu o toque mais suave que jamais sentira antes. De repente, ouviu o esvoaçar de asas nos ouvidos e levou a pata ali também. Ao tocar de novo tanta suavidade, viu uma chuva de pó colorido diante dos olhos que eram os seus. Incrédulo, pois que jamais havia imaginado que voltaria a ver aquelas multicores, o leão de novo levou a pata à juba – desta vez, não para se livrar do incômodo, mas para ajudar o bicho a libertar-se.

Borboleta multicor, misteriosamente bela, estranhamente frágil, diferente de tudo o que já havia visto com seus olhos felinos, flutuava em sua frente, dançando no vento, executando uma canção hipnótica com o ruflar das asas, exalando o cheiro de flores deliciosas que só ela conhecia, fazendo-o salivar como nunca antes em vida sua.

De repente, olhos deles encontraram-se. E o leão – que era forte e corajoso, que lutava contra bichos enormes e ferozes, que enfrentava todo e qualquer tipo de perigo para defender seu reino com seus súditos dentro dele – de repente tremeu. Não de medo ou susto. Ele apenas descobria que aquela criatura pequenina e delicada era a responsável por todas as cores e sons que um dia passaram a existir em vida sua. O leão reconhecia naquele bicho com asas multicores a criatura com pelos multicores que conhecera um dia. E sabia – um pouco pelo seu próprio instinto, outro tanto pelos olhos dela – que, embora cheia de asas, aquele bicho estranho era o mesmo de antes. Somente agora estava mais leve e livre, podia flutuar pelos ares e nem havia mais necessidade de veneno para defender-se. Tão diferente ela estava... E tão ela mesma era ela...

O leão desejou imensamente ter aquela borboleta para sempre consigo. E, então, pôde enfim repetir as palavras que haviam sido as primeiras de toda a sua vida: “Seja a rainha do meu reino, ó criatura multicor”. Desta vez, nos entantos de detalhes que há em vozes e faces, não era uma ordem de rei, mas um convite de amor.

E a borboleta hesitou um instante – instantezinho de nada – pois que morria de medo de ficar presa numa redoma de vidro – bem cuidada e paparicada, mas transformada em bicho de estimação que nem tem mais a liberdade que lhe é de direito. Ela, que tinha asas, precisava voar para escolher a melhor fonte de água, as melhores flores de alimento, as paisagens mais belas de enfeite para a vida que era a dela. Ela, que tinha asas, precisava voar ao lado daquele leão.

E o leão desejava imensamente ter aquela borboleta para sempre consigo. Jamais, contudo, ele pensaria em capturá-la e aprisioná-la. Tudo o que ele queria era que ela esvoaçasse suas cores perto dele – o dia todo, todos os dias – e, vez ou outra, pousasse docemente em sua juba. Da forma exata como ela pretendia fazer...