O Homem que Desenhava


Primeiro desenho dele foi feito ainda no ventre da mãe. Entediado e ansioso com a demora daquela formação humana em que transformava-se, rabiscou uma esfera qualquer em paredes do útero. E, enquanto a mãe contorcia-se em cócegas, um planeta surgiu algures.

Nasceu e cresceu num lugar sem sol, muito frio e cinza. As pessoas dali parece que eram também cinzentas e desaquecidas. Por isso ele nasceu e cresceu solitário, por isso ele não conseguia interessar-se pelas coisas daquele lugar e por isso ele gostava de fingir que podia viver nos desenhos que fazia.

Não sabia que os desenhos que criava viravam criaturas alhures. Rabiscava coisas quaisquer, displicente, em lugares quaisquer que fossem. Usava reles pedaços de tijolos para desenhar santuários em calçadas. Usava giz comum para desenhar monstros fantásticos em lousas de escola. Usava tocos velhos de lápis de cor para desenhar paisagens inimagináveis em versos de papel.

E todos os seus desenhos passavam a existir em algum momento do universo, em algum lugar do tempo, em alguma dimensão desconhecida. E ele nem sabia disso.

Um dia, quando o homem que desenhava era ainda um menino, ele apaixonou-se por uma mulher que nunca havia visto, cuja voz nunca havia ouvido e o perfume dela nunca havia cheirado. Era uma mulher que nem nome tinha. Ele apaixonou-se terrivelmente por uma mulher que não existia.

Solitário ao extremo, meio distraído e sempre displicente, resolveu desenhar na palma de sua própria mão a mulher que não existia. Usou tintas que nunca mais sairiam de sua pele, para poder o tempo todo ver a mulher que inventara. E, então, em algum lugar do mundo, surgiu uma fada.

E, a cada dia, desde quando ainda era menino até tornar-se um homem, ele acrescentava coloridos ao seu desenho de mulher, colocava uma mancha de nascença na sua pele, aumentava-lhe os cabelos em tamanhos e volumes, adicionava adereços à roupa dela, incrementava a beleza daquele ser perfeito que ele jamais seria capaz de imaginar que já existia.

E, enquanto isso, a fada ia crescendo em meio a lagartas e borboletas. Observava e aprendia a leveza e a delicadeza destas, mas aprendia também a força e a coragem daquelas que enfrentavam a solidão escura e apertada do casulo. Percebia-se modificada dia a dia, a cada dia mais bela, como uma obra-prima que demora séculos para ficar pronta. E não sabia de onde vinham aqueles detalhes todos em seu corpo, em seus cabelos, em suas roupas... Detalhes que apareciam novos todo dia e causavam susto em todos que viviam perto dela – iam todos para longe dela.

O homem que desenhava era sozinho. E a fada também.

Por isso, ele resolveu dar asas à sua imaginação – ou melhor: resolveu desenhar um par de asas na mulher que havia criado. Para ela poder voar e ser livre como ele nunca havia conseguido ser em vida toda que era a sua. Para ela, quem sabe, libertar-se da palma de sua mão e aparecer-lhe ali, do seu lado, real e possível como um sonho bom.

Nesse dia, a fada acordou dona de suas próprias asas. E nem precisou refletir sobre aquela maravilha de novidade, pois que foi imediata em decidir sumir no mundo. Não aguentava mais a solidão tão grande que sentia. Queria voar e voar sem rumo até encontrar qualquer coisa que pudesse ser só alegria em vida que era a sua.

Voou muito e por muito tempo. Voou tanto que atravessou o tempo. Voou até que chegou a um lugar cinzento e frio e avistou um homem rabiscando a própria mão. Nesse mesmo instante, sentiu uma cor diferente colorindo a sua asa.

Quis ver o que aquele homem desenhava e, ao chegar perto dele, levou o susto. Era ela na mão dele, ela e todos os detalhes que ele colocava no desenho e ela ganhava de presente.

O susto dele, nos entretantos todos que sempre existem em casos assim, foi maior ainda, posto que via em sua frente a mulher que estava em suas mãos. E, ao olhar para ela, pela primeira vez desde que lembrava-se de qualquer coisa, o homem que desenhava via o sol em sua vida – a mulher com asas de borboleta era o sol e era a sua vida.

Quis pegar aquela fada para si e para sempre – e arrancar-lhe as asas para que ela nunca mais fosse embora, para que o sol que ela trazia o aquecesse até o fim dos tempos.

A fada era esperta, porém. Pressentiu que o homem queria rabiscar as asas que haviam desenhadas na palma da mão dele e impediu-o com um beijo. E, então, o homem que desenhava entendeu que muito melhor era ter asas também...