O Gato e a Borboleta


Quando ela nasceu, estranho ser de consciência adormecida e feições ainda mal definidas, ele era já ágil, esperto e cheio de manhas no enfrentar a vida.

Enquanto a curiosidade o levava a observar e analisar diariamente os hábitos daquela criatura primitiva e quase abominável, ela parecia nem dar-se conta de sua própria existência, tão preocupada estava em apenas prover-se de substâncias nutritivas. Nem sequer imaginava que também era fundamental camuflar-se dos predadores. Se a natureza não tivesse encarregado-se de criá-la em tons e nuances especiais que a tornavam parte das folhas, talvez esta história nem pudesse ser contada.

Certo dia, o felino viu-se diante de uma novidade sem precedentes: aquele bicho asqueroso, ultimamente objeto de seus estudos, fechava-se em si mesmo, numa casca até que bastante esmerada. E, o que era mais curioso, parecia ter se dado conta do sentido de sua vida, parecia mais altivo e objetivo em seus atos. Como era possível? Teria espaço lá dentro para o bicho viver? Ou seria sua forma de morrer? Pela imobilidade do casulo recém acabado, a segunda opção parecia a mais verdadeira, mas por algum motivo inexplicável o bichano sentia que ainda não chegara o momento de perder seu novo brinquedo.

Resistiu à tentação inicial de tocar aquela espécie de tumba e limitou-se a gastar mais tempo do seu dia na observação de fenômeno tão inusitado. Logo, porém, movido pela curiosidade pessoal e investigativa, viu-se obrigado ao gesto que, no mínimo, aliviaria suas dúvidas: tocou de leve o casulo, como se o acariciasse. E foi então que, com surpresa e alegria, viu a pupa mexer-se em suave movimento ondulante. Constatou, assim, que o bichinho lá dentro ainda estava vivo. E não pôde compreender, no momento, o porquê de sentir-se tão contente por isso.

Os dias passavam-se lentos para ambos. O felino cochilava ao lado do casulo e lá permanecia durante grande parte de seu tempo desperto. Pressentia que mais alguma surpresa surgiria dali e ansiava para que isso acontecesse logo. A criatura encerrada lá dentro, por sua vez, sentia as transformações pelas quais passava e começava a perceber a seriedade da vida. Embora na escuridão de sua casca, sabia que outro bicho a observava lá fora e temia que ele a devorasse assim que saísse do casulo. Sentia suas carícias de vez em quando e não conseguia fingir-se de morta: o toque do bicho predador provocava-lhe cócegas. Já estava em tormentos com a dúvida: queria sair logo da casca, ver-se transformada, conhecer seu destino; mas, se fosse para morrer antes mesmo de conferir o resultado da metamorfose, preferia ficar ali dentro para sempre.

A criatura do casulo mal sabia que o felino era seu maior protetor: o bichano afugentara vários passarinhos que tentaram molestá-la e outros bichos cujo intuito era similar. Agora, ele sentia-se responsável por aquela estranha e surpreendente forma de vida que acompanhava desde muito tempo, desde o início. Queria ver o que surgiria dali e, para isso, precisava garantir que ela sobrevivesse.

A metamorfose pareceu incrivelmente lenta: ambos concordariam com isso. O felino, por estar ansioso demais em suas expectativas de observador. A criatura do casulo, por estar na escuridão e saber que seu período de vida estava já pela metade.

E eis que chegou o dia em que a criatura saiu do casulo. O bichano estava lá, a postos, e presenciou o espetáculo todo. Com que dificuldade a pobre criatura parecia lutar para libertar-se da tumba em que se encerrava! Apesar da vontade quase incontrolável de ajudá-la a livrar-se daquela casca que tanto sofrimento parecia causar, o gracioso felino apenas observou. Sentia que não poderia interferir. Sabia que suas patas eram grotescas demais para qualquer atuação naquela cena. Sabia que, por algum motivo, tinha que ser daquela maneira.

Assim, após uma eternidade, o gato pôde contemplar a linda borboleta azul recém liberta do casulo. Linda, graciosa, suave, sublime! Agora que sentia as asas secas e prontas para o voo, a borboleta estava segura o suficiente para encarar o bicho predador. E foi com certa surpresa que constatou a beleza e a graciosidade do felino. Não, aquele não poderia ser um bicho predador, de forma alguma. Não foi somente a graça harmoniosa das feições do gato que lhe deu essa certeza, visto que muitos predadores disfarçavam-se assim justamente para atrair as presas. Havia, no entanto, algo inexplicável, uma energia forte que emanava do felino e garantia à borboleta que ele era um amigo simpático e gentil. Pressentiu que o bichano não representava perigo e imediatamente lembrou-se de suas carícias que lhe provocavam cócegas. Ah! Aquelas carícias demonstravam carinho - e não ameaça. Como fora tola em temer bicho tão lindo e atencioso!


Como prova de amizade e para retribuir os carinhos do gato, a borboleta arriscou seu primeiro voo e pousou-lhe delicadamente no nariz. O bichano sentiu felicidade tão intensa que pensou ser capaz de explodir a qualquer momento. O que aconteceu de mais parecido com uma explosão, no entanto, foi o espirro que o pó liberado pelas escamas das asas da borboleta causou ao felino. Foi a primeira crise de gargalhada que ambos tiveram juntos. E a amizade incondicional entre os dois bichos acabava de ser selada. E somente aumentava a cada dia, a cada hora, a cada momento.

Amavam-se, sem dúvida. Mas amavam-se de amores diferentes.

Ele queria abraçá-la, beijá-la, tocá-la, senti-la fisicamente perto... Queria envolvê-la com as mãos, experimentar o gosto da cor tão interessante que ela tinha, acariciar suas asas macias e sentir a suavidade delas... Amava a beleza, a delicadeza, a leveza da borboleta... Admirava a capacidade de transformação que a amiga havia demonstrado. Não se cansava de contemplá-la, de usar todos os seus sentidos para aproveitar ao máximo a existência sublime que ela representava.

A borboleta, por sua vez, queria brincar, esvoaçar as belas asas em torno do amigo, mostrar-lhe as incríveis danças aéreas que criava, voar bem alto e ver o gatinho correndo lá embaixo para acompanhá-la, trazer a ele o cheiro das flores que visitava. Amava o gato por ele ser corajoso, forte, grande e ao mesmo tempo gracioso e esperto – o mais inteligente de todos os animais que conhecera em sua curta existência.

O pobre felino compreendia o instinto da borboleta, por isso nunca ressentiu-se por ela sempre manter-se afastada dele. Todas as brincadeiras da amiga implicavam certa distância entre os dois e ele sabia que essa distância era necessária. Logo no começo, constatou que era impossível tocá-la sem machucá-la: as unhas felinas arranhavam as asas da borboleta, as lambidas deformavam-lhe o voo, certa vez quase a matou ao apertá-la num abraço. Amava-a mais a cada dia, ansiava fisicamente por tê-la perto de si, sofria de vontade de tocá-la. Contentava-se, porém, em participar das brincadeiras cautelosas da amiga, satisfazendo-lhe o capricho de ser apenas um espectador de seu suave e sublime balé aéreo. Amava a borboleta e queria enchê-la de tudo o que ela quisesse.

A borboleta jamais imaginou que fosse amada dessa maneira. Nunca percebeu o sofrimento que suas brincadeiras – o exibir a graça de suas danças – causavam ao amigo. Nem mesmo chegou a desconfiar da vontade que ele tinha de abraçá-la, beijá-la e tocá-la. Até já havia se esquecido dos acidentes que aconteceram logo no começo, quando ele a machucou sem querer. Na ocasião, pensou que ele também estava apenas brincando. Amava o gato e queria enchê-lo de beleza e divertimento. Pensava ser a melhor amiga do mundo, por proporcionar ao felino o espetáculo sublime do voo e das cores de suas asas.

Assim foi, até que chegou o dia em que o gato não pôde mais controlar-se diante daquele espetáculo de asas. Talvez tenha sido na época em que a borboleta começava a procurar outro de sua espécie. A amiga aprendia novas coreografias a cada dia e tornava-se ainda mais bela e irresistível. Para ele, já não bastava ver a dança da borboleta: ele tinha muitos outros sentidos e queria – precisava – usá-los! Tinha o tato para tocar, o olfato para cheirar, a língua para provar... Não queria machucá-la, é lógico que não, afinal, ele a amava intensamente e cada vez mais! Queria apenas senti-la de verdade, dar carinho a ela e receber seu toque suave como retribuição. Não queria machucá-la, de forma alguma... Não queria e tentaria ser delicado e gentil, para que nada de mau acontecesse à amada.

Quando ela apareceu, esvoaçando-se numa dança em torno da cabeça do bichano, ele estendeu a pata para capturá-la. A amiga escapou, pensando ser mais uma das inúmeras brincadeiras que ele inventava para diverti-la. O felino, no entanto, voltou a estender a pata, estendeu de novo e mais uma vez, depois passou a usar as duas e em intervalos cada vez menores. Logo suas garras afiadas já estavam de fora sem que ele mesmo percebesse, o instinto sobressaindo-se à intenção inicial de apenas sentir sua amada mais de perto. Em pouco tempo, as unhas agarravam-se às asas, dilacerando-as, e a borboleta via-se presa entre as mãos do amigo, sem entender direito o que acontecia.

Ele a lambia com avidez, não se contendo de felicidade por, finalmente, ter a amada para si. Queria experimentar o gosto daquelas asas tão lindas e macias que tanto o enterneciam. Nem se dava conta de que terminava de destruí-las com sua saliva grossa. Nem se dava conta do quanto a amiga sofria.

Era tão gostoso sentir aquela criaturinha em suas patas, que não pôde resistir à vontade de envolvê-la como se a abraçasse com as mãos. A borboleta contorcia-se, tentava escapar, previa o que poderia acontecer se o amigo calculasse mal a força do abraço. Surpreendeu-se ao constatar que suas asas já não serviriam mais ao propósito para o qual haviam sido feitas. O felino, cada vez mais afoito, envolveu a amada com força, como se faz quando a saudade é muito grande.

Foi nesse dia que, com o maior dos amores e a melhor das intenções, o gato acabou com a vida da linda borboleta azul.