Gula

(Por Lacerda & Sessyllya)


E a tigresa – faminta – não conseguia decidir o que era maior: se era sua fome de comer ou se era sua fome de ser devorada.

Então, pediu ao tigre que a devorasse aos poucos, partes do seu corpo, pedaços da sua alma, até existir apenas dentro dele – do tigre que tinha fome e sede dela.

Dentro dele, tigresa virou brilho em olhos dele, beleza em sorrisos dele, tranquilidade no coração dele e sono para os sonhos dele. Nesses sonhos, o tigre sonhava com as partes da tigresa e com o todo dela antes de ser devorada. A delicadeza do pelo macio, o cheiro dela, seus olhos de felina. Sonhou tanto com a tigresa que sonhava até acordado.

Até que houve o dia em que ela – enfim – libertou-se dos sonhos do tigre e apareceu – inteira – diante dos olhos dele. Sem perder tempo, devorou-o com mordidas fortes e lambidas delicadas. Saboreou cada dentada, cada pedaço. E o tigre passou a existir apenas nos sonhos dela.

Até que houve a noite em que ele também conseguiu libertar-se e dar início ao ciclo infinito de devorar sua tigresa todas as noites, parte por parte, sem nunca sentir-se saciado, e ser devorado por ela todos os dias, com dentadas violentas e outras suaves, sem que ela conseguisse jamais sentir-se saciada.

E, de tanto morarem um dentro da outra, uma dentro do outro, começaram a misturar-se em si mesmos, um na outra, uma no outro, até tornarem-se partes de uma só criatura, metades que completavam-se de maneira perfeita, partes de um ser raro e mágico que era dois e um a um só tempo, e que vivia numa união metafísica que nenhuma distância era capaz de destruir...