Vingança


Havia já 16 anos desde que fora atacada pelos lobos brancos. As lembranças daquela noite já não lhe perturbavam tanto, mas ainda apareciam às vezes, durante o sono. No começo revoltou-se, quis vingar-se, fugir... Mas jamais conseguiria vingar-se ou fugir das centenas de lobos brancos que a atacaram. Por isso, acabou juntando-se a eles.

Levou algum tempo até descobrir a verdade sobre o aumento desordenado da população de lobos naquela região. Aquela história de que eles começaram a reproduzir-se desordenadamente era uma farsa. Em primeiro lugar, eles reproduziam-se muito pouco, pois a quantidade de fêmeas era insignificante por ali e elas só permitiam a cópula nas épocas de cio. Em segundo, os lobos brancos eram nômades caçadores e migraram para aquele lugar após serem escorraçados de um vilarejo no estado vizinho. Devoraram os lobos nativos e, desde então, começaram a alimentar-se principalmente de pessoas que passavam desavisadas pelo lugar, o que acontecia regularmente.

Não entendia como as pessoas continuavam aventurando-se por aqueles caminhos, mesmo sabendo do perigo que corriam. Descobriu, ao longo dos anos, que era aquela velhinha caquética quem as convencia a caminharem rumo ao Grande Rio, em troca de os lobos deixarem em paz a população do vilarejo. Como a região era um ponto turístico muito famoso e importante no país, todos os dias recebiam boas e fartas refeições humanas: 30, 50 pessoas, às vezes o dobro disso.

Algumas vezes, caçadores armados atiravam nos lobos, mas eles nem mesmo sangravam. Aqueles lobos não morriam. Lobisomens. A população de lobos aumentava desordenadamente por esse motivo. Uma espécie de lobisomens que não tinham mais necessidade de transformar-se em homens para caçar, visto que a caça ia certeira até eles. E ela também tornou-se um deles. Também comia turistas desavisados que se perdiam por aqueles prados.

Nos primeiros dias após o ataque, foi difícil acreditar no que seus olhos viam, mas logo as evidências tornaram-se incontestáveis. Havia transformado-se em um deles e o mesmo acontecia com todos aqueles que eram atacados nas noites de sexta-feira.

Conseguiu viver assim por 16 anos, assim como seu amigo. Tempo suficiente para que planejasse algo – qualquer coisa – que pudesse interromper a situação. Procurou por anos a fio até encontrar a erva – uma que conhecia de tradições antigas, única capaz de acabar com essa espécie de lobo. Já não podia contar com o amigo, há muito integrado como se fora nascido ali, lobisomem como os outros – tornara-se o chefe da alcateia. Haveria que agir sozinha.

Assim, em dia que julgou conveniente, ingeriu quantidade adequada do veneno e provocou o amigo da maneira como sabia que deveria ser. Provocou-lhe irritação, raiva, ódio, fúria... Os outros lobos todos manifestaram-se, sabiam como agir em situações desse tipo. Desafiar o chefe era erro imperdoável. Qualquer outra infração às regras poderia ser relevada, menos essa.

A uma ordem do chefe, os lobos atacaram – sem que reação alguma de fuga ou enfrentamento fosse percebida na infratora. Cada um dos lobisomens obteve um naco daquele corpo, embora a parte mais nobre – o coração – ficasse reservada ao chefe.

Somente dias – muitos – depois, quando uma quantidade inenarrável de urubus foi capaz de formar uma nuvem que cobrisse a luz do sol por mais do que alguns instantes, a população do vilarejo deu-se conta do significado da palavra “liberdade”.